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UMA ENTREVISTA COM STEFAN ZWEIG, 1936, Rio de Janeiro in Jornal do Commercio Jornal do Commercio, Rio, 26.08.1936, p. 4 O que o grande escriptor disse aos outros reporters e aquillo que nos ficou... – Como e porque foi escripta a biographia de Maria... Antonietta – Fouché e o heroe mediocre e involuntario – A poesia na composição da historia – A oppressão, pelas massas, da personalidade humana – A revolta de Erasmo e o culto que lhe vota Zweig – A Europa ideal e o dever do poeta Stefan Zweig recebeu no Copacabana Palace os jornalistas cariocas. Quiz dar-lhes uma entrevista colletiva, que [segundo ele] é a melhor forma, a mais moderna e esperta, de não dar entrevista nenhuma. A ancia de perguntar multiplica as questões, as mais diversas, e o entrevistado, inquerido sobre literatura, sobre política, sobre paizagens, sobre homens e coisas, responde por meias palavras e pensamentos incompletos, ou sorri apenas e não responde... Assim foi com Stefan Zweig em face da investida profissional dos reporters cariocas, chamados para vel-o e ouvil-o. O brilhante escriptor que nos visita falou bastante, mas disse apenas o que lhe pareceu bem dizer e não fugiu á banalidade de fazer elogios á natureza e de teçer lôas á terra carioca, aos morros que os outros já louvaram e ás aguas que tantos já cantaram. E’ verdade que o brilho da palavra de Stefan Zweig emprestou um colorido novo aos encantos da nossa terra e abriu os nossos olhos para vermos melhor as bellezas de que nos orgulhamos e para despertar o nosso interesse por aquillo que para nós não parece mais novidade. Tinhamos, porém, um desejo ardente de ouvir Stefan Zweig sobre coisas que dizem mais respeito a elle do que a nós. E fomos para o Copacabana Palace armados de perguntas e de curiosidades que, respondidas e satisfeitas, nos compensariam o esforço profissional de bem servir ao leitor, Tão interessado por certo nas confidencias e expansões do escriptor de Fouché como nós outros. Mas foi um tormento para o repórter a entrevista collectiva do grande escriptor. Um tormento, uma angustia e uma decepção constantes. Mal engatilhamos a nossa pergunta e outra, mais alto, varava o grupo dos que cercavam o escriptor. e a nossa interrogação parava na primeira syllaba, ou perdia-se na descontinuidade do vozerio dos que queriam saber antes de nós. Ou, então, era o proprio Zweig que falava, para que os outros se calassem. A impaciencia de ilustre e amavel escriptor, timoneiro festejado de novel associação de homens de letras, desejava que a entrevista tivesse fim, porque outras reuniões aguardavam a presença honrosa do hospede eminente. A solicitude do Presidente da Associação Brasileira de Imprensa [Herbert Moses] velava pelos seus commandados, afim de que estes ouvissem o bastante para escrever alguma coisa, mas ao mesmo tempo receiava as perguntas que roçassem pela indiscreção ou pela gaffe. E nós iamos ficando nervosos pela impossibilidade de cumprir com o dever profissional. E pensando na segunda questão premeditada, esqueciamos nem haver sido formulada a primeira... E quando o tempo passou e nos vimos na calçada da Avenida Atlantica, fugindo ao automovel que arrancava da porta do Copacabana, carregando com Stefan zweig para não sabemos onde, pouco a pouco foi-se fazendo luz no nosso espírito e, como por milagre, as perguntas que imaginamos e as respostas que recebemos foram se precisando, se illuminando, se completando para esta entrevista com que agora podemos brindar os leitores do Jornal do Commercio. Assim, a primeira coisa que quizemos saber de Stefan Zweig foi sobre Maria Antonietta e perguntamos: -Oque o levou a escrever sobre Maria Antonietta? -Durante muito tempo, disse elle, não consegui comprehender claramente o caracter de Maria Antonietta. Tinha presentes á memoria, de um lado os dados vivamente discutidos dos advogados da Revolução e de outro lado as idolatrias da literatura realista. Para meu prazer pessoal, quiz estudar esse caracter e fui levado assim a fazer buscas systematicas que me abriam sem parar novas perspectivas. Puz-me a pesquisar noa archivos de Vienna e com agradavel surpresa, percebi que uma parte importante da correspondencia de Maria Thereza era desconhecida. Naturalmente, a Republica não hesitou em permitir a publicação dessa corrspondencia. -Tal correspondencia é, com effeito, de apaixonar e a edição que Georges Girard publicou fornece uma ilustração exacta da biographada. -Não lhe parece? De outro lado, uma paixão que cultivo de longa data, a collecção de autographos, me serviu tambem. Assim, eu estava ao corrente de numerosas cartas attribuidas falsamente a Maria Antonietta. cartas que outros biographos da rainha utilizaram com confiança em seus livros. Pareceu-me, pois, que uma biographia de Maria Antonietta, baseada em documento exactos, não seria uma coisa superflua, mas que, ao contrario, respondia a uma necessidade. Um tal trabalho não deixava de ter attractivos para mim. Porque, na minha qualidade de austriaco conheço naturalmente a historia do meu paiz, e via assim a possibilidade de explicar diversas particularidades do temperamento verdadeiramente austriaco de Maria Antonietta. Nada é, com effeito, mais falso de que ver, como tantas vezes se fez, uma allemã nessa mulher meio lorena meio austriaca. De outro lado, a historia de França não me era de todo estranha... -Sim, todos o sabem pelo Fouché. -E foi para mim uma verdadeira felicidade poder dedicar-me a essa obra psychologica tão rica em perspectivas. Em Fouché existe um destino monstruoso, tanto mais terrivel quanto não se trata de uma individuo superior, mas de um ser mediocre. Nunca a biographia de um heroe puro me exaltou tanto quanto a de um heror involuntario, do homem votado a um destino para o qual não fôra de todo feito psychologicamente. Em uma figura como a de Maria antonietta, eu vejo a forma a mais humana de tragico e escrever a historia dos humanos foi sempre para mim de um attractivo bem mais consideravel do que a de dedicar-me a dos deuses. -Em summa, tem bastante prazer em que a poesia se misture com a historia. -Perfeitamente. Aliás, quando faço historia, continuo a escrever ao mesmo tempo romances e novellas. Somente, acontece-me o que tem acontecido a outros: a historia desperta em mim um vivo interesse e a causa disso está, sem duvida, no tumulto da nossa época. Antes de 1914, eu pertencia á multidão dos escriptores que, systematicamente, não liam nos jornaes nada sobre política, economia ou sports, a respeito do que professavam maior desprezo. Fomos brutalmente despertados e constrangidos a tomar parte em tudo o que se passa em torno de nós. Devemos nos esforçar por comprehender o mundo no qual vivemos, assim como as leis que regem. Para isso, não ha, não pode haver melhor meio do que a historia. Supponho que não sou o unico a pensar que o sentido da historia e de suas narrativas nunca surgiu tão claramente como nestes annos de crise. -Não é, portanto, daquelles que afastam os ensinamentos da historia para explicação da nossa época? -Creio antes de tudo que hoje comprehendemos melhor a historia do que a maior parte das gerações que nos precederam porque nós temos vivido como testemunhas, no curso destes ultimos vinte anos, todos os estados criticos imaginaveis. Vimos regicidios, revoluções e contra revoluções, a guerra, a fome, o bloqueio, golpes de Estado, bancarrotas de Estado, desvalorização de moedas, inflações, convenções e dictaduras. Em vinte annos, assistimos e participamos de todas as peripecias e catastrophes que de ordinario se repartem por um seculo. Podemos, pois, melhor comparar e melhor comprehender o que já se passou do que qualquer outra geração antes de nós. Certo, as analogias não são nunca perfeitas; a historia não se repete, mas nos recorda certos typos de homens, certas formas de acontecimento. Estou convencido de que raramente se leu tão boa historia como na nossa época, que raramente a historia e a biographia encontraram tão bons narradores. -Mas, parece-lhe que a essa experiencia intensiva a nossa época tenha ajuntado qualquer coisa de novo? -Ella criou, antes de tudo, uma nova dimensão; nunca se tinham registrado na historia acontecimentos collectivos de tão grande envergadura. A guerra de 1914 foi o primeiro acontecimento desse genero que poz em ...centenas de milhões de individuos,... outra guerra antes della tinha penetrado... uma forma tão profunda na existencia das nações: e porque o Estado mantinha então o individuo com um pulso mais brutal e mais ... do que outrora, nunca mais elle o ... gou. A isso se juntam as invenções... que, como o radio, tocam a milhões de ... viduos no mesmo segundo; ou as manifestações políticas, que como em Moscou, em Berlim... Roma, agrupam na mesma hora um milhão de pessoas; ou ainda a desvalorização do dinheiro, o que, como na Europa Central ou na América, permite aos Estados metter-se da ... maneira em milhões de bolsos ao mesmo tempo. Tudo isso crêa uma uniformidade de... e de impressões que não conheciamos ... . Assim tambem, o observador sincero de ... deve estudar a psychologia das massas ... quanto a do individuo. Historicamente, ... nada tenha mudado, não se produziu ... uma extensão e um alargamento enorme ... factos. Mas uma decorrencia tão subita ... fatalmente acarretar uma crise. Toda inquietudo que nos assalta neste ... mento resulta em definitivo do facto de ... estarmos ainda completamente adaptados ... novo rythmo, ás novas dimensões dos acontecimentos. -Vemos que pensa, como muita gente e estamos ahi de accordo – que a mais ... ameaça que pesa sobre o homem na hora ... é a oppressão da sua personalidade pela ... collectiva. Acredita que o individuo ... subtrahir-se a essa pressão das massas? -Exteriormente, não, bem entendido ... que dependemos do passado, pertencemos á lectividade, a um Estado, somos seus ... ros. Mas do ponto de vista interior, a ... dencia é sempre possivel, embora isso ... os maiores esforços. Estudei recentemente a ... de Erasmo, objecto de um dos meus ... trabalhos, e encontrei nelle um dos raros homens que souberam conservar sua independencia interior em uma época de crise ... mundial. Hoje, a Europa está acuada entre o fascismo e a democracia. No tempo de Erasmo, pelo ... vento de Luthero, o protestantismo e o catholicismo despedaçavam a Igreja, esse ultimo Estado europeu. Não havia tambem então liberdade de escolha para o individuo, elle devia se manifestar de um modo ou d’outro. Mas Erasmo odiava o exagero por um lado e por outro elle detestava o fanatismo, viesse de onde viesse. Assim, tomou elle a posição a mais ingrata, collocando-se entre os dois partidos e tentando soldar novo – ao menos espiritualmente – o mundo dividido, quebrado, esfacelado. Ainda hoje um homem como Erasmo, capaz do mesmo esforço, seria de maior necessidade. O estudo da sua vida muito me ajudou a comprehender a época dá reforma tão semelhante á nossa, pela sua brutalidade e pela sua grandeza. Assim constituiu para mim um dever erigir um monumento de gratidão, por menor que seja, a esse primeiro europeu, a esse amigo apaixonado da paz, a esse precursor que viveu antes de nós todos os perigos aos quaes estamos expostos no mundo de hoje. E para concluir, vendo em Stefan Zweig o europeu que não perdeu a fé na Europa, ... do seu idealismo e elle concluiu: -Nós que acreditamos em uma Europa futura, e que nella já vivemos pelo ... temos a obrigação de nos lembrarmos de todos aquelles que, vindos ao mundo muito cedo, lutaram em vão por essa idéia e por ella chamaram sobre si o desprezo e o odio. Assim como as nações levantam estatuas aos seus fundadores e aos seus heróes, é preciso que comecemos a construir os monumentos que ornamentarão mais tarde o pantheon do espirito. Erasmo me é tanto mais caro quanto elle foi um vencido. Têm sido suficientemente exaltados os que dividiram o mundo com os dogmas ou com a guerra ... remos tambem aquelles que quizeram a sua união ou que, pelo menos, acreditaram num accôrdo espiritual de todos os homens. E se a propria historia não celebra senão o vencedor ... cabe-nos a nós, que temos a praticar uma justiça espiritual e psychologica, pensar tambem nos vencidos, porque o sucesso se glorifica por si mesmo, enquanto que aquelles que fracassaram não têm outro defensor senão o poeta. E ahi, com essa evocação a uma justiça de generosidade, através a belleza e a pureza da poesia, stefan Zweig calou-se. Não ouvimos mais os seus conceitos admiraveis e ao ... aqui, nestas linhas, o que pensamos ter ouvido do grande biographo de Dostolewsky não sabemos bem se foi a nós que elle disse tudo ... ou se na nossa memoria estavam apenas ... das as palavras que um dia André Rousseau ouviu e reproduziu em uma das suas interessantes reportagens com o escriptor de projecção universal, que ora nos visita... |