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TEXTOS

A invenção do paraíso no inferno do Estado Novo


Alberto Dines

O Brasil começa com um relato, sua história é uma relação destes relatos. O entusiasmo de Pero Vaz de Caminha ao descrever a terra recém-descoberta deu o tom e estabeleceu um padrão raramente contrariado. O deslumbramento com a exuberância da terra foi geralmente acompanhado pela admiração com a sua gente.

Esta vasta literatura situada entre o imaginário e o real foi produzida por navegadores, comerciantes, corsários, missionários, cientistas dos mais variados saberes, viajantes de diferentes nacionalidades e, a partir do final do século XIX, também por brasileiros. Entre tantos olhares e vozes, talvez apenas um poeta. Stefan Zweig não era um poeta versejador, mas um Dichter, poeta-artista.

Américo Vespúcio foi certamente o primeiro a ser tocado pela metáfora do Paraíso terreal no panfleto Mundus Novus (1505) que inflamou a imaginação de tantos europeus, inclusive Thomas More, o criador da Utopia.

Na construção do mito da grandeza brasileira cabe um lugar destaque aos Diálogos das Grandezas do Brasil, original criação literária no estilo do colóquio platônico, com forte viés científico e ricas referências históricas. Arrebatada prospecção do potencial econômico da colônia no momento em que apenas franceses e holandeses preocupavam-se com ela. Escritos em 1618, quando o Brasil pertencia à Espanha, estes diálogos só foram publicados sob a forma de livro cerca de três séculos depois (1930) e, mesmo assim, sem o nome do autor na lombada. Ambrósio Fernandes Brandão, autor e alter ego de Brandônio, assim como o outro interlocutor, Alviano (Nuno Alvares) eram senhores de engenho, cristãos novos (isto é, ex-judeus ou judeus escondidos) de Camaragibe que tiveram contas a prestar ao Santo Ofício nas primeiras visitações à Bahia.

A peça mais visível da vitrine onde se exibe a imagem do nosso país é a ode Brasil, um país do futuro, de Stefan Zweig. Com os seus 65 anos recém-completados, transformou-se em epítome do olhar estrangeiro. Nos 506 anos desde o Descobrimento, tornou-se a crônica mais conhecida e a menos discutida, a mais celebrada e mais negligenciada. Certamente, também a mais dramática, se levarmos em conta o suicídio do autor, oito meses depois da sua publicação.

O artífice da façanha de introduzir o Brasil como importante ator em meio ao turbilhão da Segunda Guerra Mundial não foi um editor, empresário, estadista ou funcionário do governo. Em agosto de 1941, poucos meses antes da entrada dos Estados Unidos no conflito, o famoso escritor austríaco (já em luta contra a depressão), conseguiu organizar um mega-lançamento de um livro que, dois meses antes, sequer tinha um título, mencionado nas cartas em inglês como “the Brazilian book”.

Um ano antes, no Rio de Janeiro, em meio às pesquisas, Stefan Zweig já imaginava um lançamento internacional. Para ultrapassar o embargo das editoras alemãs e francesas submetidas à censura nazista, imaginou imprimir no Brasil as respectivas traduções.

Desistiu, mas percebeu que em Nova York (àquela altura no início da sua trajetória como capital cultural do mundo) poderia fazê-lo mais facilmente. Assim, em poucos dias armou oito edições: duas em português (Brasil e Portugal), duas em inglês (Estados Unidos e Canadá), francês (para os países francófonos, exceto a França ocupada), espanhol (para a Argentina), em alemão e sueco (impressas em Estocolmo).

Logo depois, em janeiro de 1942, realizava-se em Petrópolis um magno evento interamericano destinado a imunizar a Iberoamérica contra a penetração nazi-fascista. Em fevereiro, desembarcava no Rio o cineasta americano Orson Welles com a missão de descobrir o Brasil para o público americano e, em agosto, o país entrava na guerra ao lado dos Aliados. Brasil, um país do futuro tem papel importante neste cronograma.

Stefan Zweig desembarcou no Rio de Janeiro duas semanas depois de o livro ser anunciado nos jornais e resenhado pelos principais articulistas. Era a sua terceira viagem ao país, pretendia demorar-se, esperar o fim da guerra, por isso alugou um bangalô em Petrópolis. Tinha muitos planos e projetos. Não há registro de suas expectativas com relação à edição brasileira, mas elas podem ser calculadas a partir das decepções, estas sim, bem documentadas.

O livro é, na realidade, fruto das duas viagens anteriores. A primeira, em agosto de 1936, durou apenas dez dias, mas foi uma sucessão de triunfos. Recebido por Getúlio Vargas, acompanhado pelo seu anfitrião, o chanceler Macedo Soares, ovacionado de pé numa conferência na Escola Nacional de Música, fotografado, entrevistado, assediado por autógrafos confessou em carta que se sentia como um Charlie Chaplin.

Em uma das entrevistas, tomado pela euforia, foi peremptório: “Serei o Camelot do Brasil na Europa” . Começou a cumprir a promessa logo depois do regresso com uma série de artigos publicados na imprensa européia e americana.

Nos anos seguintes, Zweig manteve intenso contacto com o Brasil, sobretudo com os diplomatas, seus cicerones e anfitriões na primeira viagem. E também com o seu editor, Abrahão Koogan, da Editora Guanabara que começou o lançamento de suas obras completas, em edição encadernada, vendida no então revolucionário sistema de vendas a domicílio.

Com a anexação da Áustria pela Alemanha em março de 1938, Zweig tornou-se um apátrida e, logo em seguida, percebe-se que aquele cosmopolita, cidadão do mundo, verdadeiro proto-europeu, não poderia viver sem uma nacionalidade. Começam as demarches para naturalizar-se brasileiro, mas para obtê-la, precisaria vir duas vezes ao nosso país. Preferiu o passaporte britânico, já que vivia legalmente em Londres desde 1934.

O Brasil irrompe em sua vida em maio de 1940 quando a blitzkrieg de Hitler tornou inevitável a queda da França. Casara-se oito meses antes com a sua ex-secretária, comprara uma linda casa em Bath e, não obstante, tomado pelo pavor de uma iminente invasão nazista registrou nos diários a necessidade de comprar um frasco de morfina (anotação de 26/10/1940).

Quatro dias depois, ainda mais apavorado, registra que não sabe para onde ir: “Disseram-me que posso ir para o Brasil, via Nova York”. Em 13 de junho, a desesperança alia-se ao medo: “...Para que viver e onde viver ?”. Dois dias depois, já está com as passagens para o Brasil, garantido o visto de entrada e assegurada a autorização de trânsito nos EUA.

Está armado um binômio que explicará tudo o que vai lhe acontecer nos próximos dois anos: o medo da guerra e a imagem do Brasil como santuário. Brasil, um país do futuro é a peça-chave do binômio “medo-esperança”.

Uma das primeiras providências em Nova York foi telegrafar para o editor brasileiro, Abrahão Koogan, e anunciar que regressaria ao Brasil em Agosto para passar algumas semanas e completar o “Brazilian book”. E nas semanas seguintes pede insistentemente a Koogan que mantenha os seus amigos diplomatas informados a respeito do livro que vai escrever. Este é outro dado que não pode ser ignorado.

Na segunda viagem, (agora acompanhado pela segunda mulher, Lotte), passou cinco meses. Percorreu o circuito histórico de Minas, voltou a S.Paulo e conversou com muita gente: Roberto Simonsen foi o seu consultor em matéria sócio-econômica, Afrânio Peixoto ofereceu-lhe subsídios em matéria de literatura, sobretudo no tocante a Os Sertões, Pedro Calmon ajudou-o em matéria histórica. Esteve com Gilberto Freyre, mas aparentemente não leu a sua obra (foi a queixa do famoso sociólogo quando eu o entrevistei em 1980). Mas o livro brasileiro não poderia ser mais freyriano.

Antes de ser introduzido ao exotismo do Norte-Nordeste o casal Zweig foi à Argentina a fim de atender a diversos convites para conferências na capital e no interior.

Pouco antes de regressar ao Brasil uma formalidade inesperada: vai ao consulado brasileiro em Buenos Aires, onde no seu passaporte e no da sua mulher são carimbados os vistos de residência permanente. Uma preciosidade. Além disso, ficam dispensados de qualquer documentação. Privilégio concedido a poucos estrangeiros, sobretudo quando se tratava de refugiados do nazismo de origem judaica.

No regresso ao Rio, enquanto mergulha em leituras sobre o Brasil, mantém contactos com Lourival Fontes e o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) que lhe oferece todas as facilidades para conhecer a Bahia, Pernambuco e o Pará, inclusive um repórter-cicerone para contornar as dificuldades com o idioma e, ao mesmo tempo, fazer a cobertura da viagem para o vespertino A Noite e a Agência Nacional, ambos do governo.

Num Catalina da Panair, visitam cinco capitais em oito dias, sempre recebidos pelos Interventores Federais (ou seus delegados) e festejados pela imprensa local. A Noite e a Agência Nacional abastecem de notícias a imprensa do Rio e S.Paulo. De Belém, o Strato-Clipper da Panam leva-os de volta para Nova York, via Trinidad-Tobago e Miami.

O “livro brasileiro”, ainda sem título, é concluído na biblioteca da Universidade de Yale (New Haven, Connecticut) entre fevereiro e março de 1941. Os originais em alemão são despachados por via marítima, em duas remessas para o editor Koogan. A tradução será feita por Odilon Galloti, psiquiatra (um dos primeiros do Brasil).

Numa febril troca de cartas, Zweig insiste na rigorosa revisão de fatos, datas, nomes, ortografia e exige que a lista das correções lhe seja comunicada de modo a alterar as demais traduções iniciadas simultaneamente.

O título da obra só aparecerá em 22 de Abril quando em carta ao editor Koogan, Zweig informa em francês: “...escolhemos [note-se o plural] Brésil, Pays du Futur...” O título foi alterado dias depois para Le Brésil, Terre d’Avenir, literariamente mais esmerado. No contrato para a edição alemã, assinado em 25 de Abril, ainda consta o título provisório Ein Blick Auf Brasilien.

Mas a edição alemã, ao contrário das edições em língua portuguesa, espanhola e inglesa acabou por apresentar no título um detalhe significativo, certamente imposto por Zweig, sempre rigoroso em matéria de estilo: Brasilien, ein land der Zukunft, “Brasil, um País do Futuro”. O artigo indefinido é menos afirmativo, o Brasil é um dos países do futuro e não mais o país do futuro.

A reedição do livro com nova tradução de Kristina Michahelles (LP&M, Porto Alegre, agosto de 2006) obedece fielmente à escolha do autor e contraria o título original em português. Na edição sueca, impressa em Estocolmo, consta outro título original: Brasilien, das Land der Zukunft, mais afirmativo e mais próximo do espírito do nome inglês, Brazil, land of the future. Em sueco, na capa ficou apenas o nome do país, Brasilien, porém mencionado por inteiro na página de rosto: Brasilien Framtidslandet (sem artigo).

No tocante ao título, o mais curioso, roçando quase no tragicômico, é que a expressão “país do futuro”, convertida numa espécie de apelido ou sobrenome do Brasil, não foi criação de Zweig, mas sugestão do tradutor do alemão para o inglês.

James Stern (que nesta obra usou o pseudônimo Andrew St. James), Zweig e o editor americano, Ben Hübsch, vice-presidente da Viking Press, chegaram à conclusão que o livro precisaria de um título mais instigante do que o pretendido Ein Blick auf Brasilien. Como James Stern estava imerso na tradução do texto para o inglês, encontrou a solução na epígrafe em francês, esta sim sugerida por Zweig:

Un pays nouveau, un port magnifique, l’éloignement de la mesquine Europe, un nouvel horizon politique, une terre d’avenir e un passé presque inconnu...

Une terre d’avenir... Excelente título para um livro de viagem, magnífico cognome para um gigante que poucos conheciam. Acontece que esta epígrafe inspiradora encontrada por Zweig e valorizada por James Stern foi escrita em meados do século XIX pelo embaixador austríaco junto à corte do Imperador Pedro II, o conde Prokesch Osten, para persuadir um diplomata francês a aceitar o posto no Rio de Janeiro.

Este francês que acabou convertido em embaixador no Brasil chamava-se Gobineau. Na epígrafe e ao longo do texto Zweig o designa apenas pelo sobrenome e omite o título nobiliárquico, alias falso. Embora o conteste em diversas passagens, Zweig não indica que o embaixador era o patriarca do racismo moderno e inspirador da ultradireitista Action Française que naquele exato momento inspirava o governo títere de Vichy.

(Novelista, historiador e ensaísta, Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882), embora nascido no seio de uma família modesta, inventou um passado aristocrático e o título de conde. Seu Essai sur l’inegalité des races humaines, bíblia do racismo e do reacionarismo político, exerceu grande influência sobre as idéias políticas do compositor Richard Wagner. Foi secretário de Alexis de Tocqueville e detestou o Brasil, embora tenha se correspondido com D.Pedro II até a morte).

Resultado: a epigrafe que produziu um título admirável e mundialmente conhecido foi excluída da primeira edição francesa e, por tradição, omitida até hoje. Mesmo no Brasil, a epigrafe só saiu nas primeiras edições. Nas Obras Completas (e póstumas), a partir de 1953, Gobineau já entrara no rol dos nomes malditos e politicamente incorretos mesmo na condição de inocente destinatário de uma carta. No rol dos atributos dos brasileiros, Zweig jamais incluiria este tipo de preconceito. Na introdução, cita os “endemoniados teóricos das raças”, numa clara alusão a Gobineau, mas não o identifica.

A combinação Brasil+Futuro já estava presente na série de crônicas escritas em 1936, quando sentencia: “Quem conhece o Brasil de hoje, lançou um olhar para o futuro”.

No texto do livro de 1941, escrito antes da escolha do título, o porvir aparece como protagonista em diversas passagens. Extraída da ditirâmbica introdução do livro uma frase foi destacada na contracapa da primeira edição (em brochura): “...Então lancei um olhar sobre o futuro do mundo”.

Mais adiante, o futuro aparece entrelaçado à própria gênese do livro:

...Onde quer que as forças éticas estejam trabalhando, é nosso dever fortalecê-las. Ao vislumbrar esperanças de um novo futuro em novas regiões de um mundo transtornado, é nosso dever apontar para este país e para tais possibilidades...

O tema reaparece com grande sonoridade na conclusão da primeira parte do livro: “Onde há espaço, há tempo e há futuro. E quem vive neste país ouve o sussurro forte das asas céleres do futuro” .

Como sempre, o livro foi recebido com enorme simpatia pelo público, o nome Zweig era mágico, tornava palpitante qualquer assunto. Implacável foi a reação dos críticos e resenhadores. O lançamento foi inusitado para a época, acompanhado por anúncios e notícias promocionais na imprensa. A badalação provocou um efeito contrário, sugeria interesses ocultos na promoção da obra.

A cobertura da viagem de Zweig pelos veículos jornalísticos ligados ao governo reforçou as intrigas que corriam soltas num regime fechado pela censura: o livro fora financiado pelo DIP. Pesou, sobretudo, uma conclusão simplista: elogiar o país significava elogiar o governo e o governo era uma ditadura que precisava ser condenada.

A ninguém ocorreu que Zweig louvava um povo e a sua história. E como a grande imprensa convivia com a censura, para livrar-se desta culpa desconfortável, preferiu destruir um livro e o seu autor já que não poderia denunciar o governo que o teria patrocinado.

Exemplo da viciosa campanha foi o Correio da Manhã, um dos mais importantes do país. O próprio redator-chefe, Costa Rego, um dos jornalistas mais influentes da Capital, escreveu cinco artigos sucessivos na prestigiosa página dois do jornal no mesmo espaço onde escrevia seus comentários políticos. E teria escrito mais alguns, se na redação alguns jornalistas não tivessem sugerido mais moderação (quem me revelou o episódio 40 anos depois foi Antônio Callado).

Costa Rego fixou-se em detalhes irrelevantes, reconhecia que eram insignificâncias, mas parecia dominado pela compulsão de desmoralizar o célebre escritor estrangeiro que estaria a serviço de um governo que ele não tinha a coragem de criticar.

O comportamento deste jornalista dá uma idéia das ambigüidades reinantes no Estado Novo. Costa Rego não contestou Zweig a propósito da sua observação de que a ditadura Vargas era branda, se comparada com as ditaduras européias. Se estivesse comprometido com a redemocratização do país teria razões de sobra para comentar o comentário de Zweig. Se Costa Rego fosse um oposicionista genuíno teria que explorar as constatações de Zweig sobre a miséria que afligia grande parte da população brasileira.

Costa Rego jamais contestou o tosco ufanismo do conde Afonso Celso tão estimulado durante o Estado Novo, mas sentiu-se na obrigação de gozar o estrangeiro que tentava uma patriotada com uma pátria que não era sua.

Curiosamente, no Diário de Notícias (muito mais antivarguista do que o Correio) apareceram artigos menos intolerantes e uma longa resenha, de certa forma tocante, embora rigorosa em outros aspectos. Eram assinados por Osório Borba, então crítico literário, mais tarde um dos fundadores da Esquerda Democrática (que se transformaria no Partido Socialista Brasileiro, PSB). Disse Borba que o carinho de Zweig pelo Brasil era tão grande que, caso se demorasse no Brasil, teria que abrasileirar o seu nome para Estevão Ramos.

Além do apoio para as viagens a Minas, Bahia, Pernambuco e Pará, teria Zweig recebido algum estipêndio do governo brasileiro? O escritor bem-sucedido, autor de uma sucessão de best-sellers internacionais, herdeiro de uma rica família de empresários têxteis, teria recebido dinheiro para falar bem do país que adorava sinceramente desde que pisou nele pela primeira vez?

O próprio Zweig reagiu às calúnias numa longa entrevista publicada dois meses depois do lançamento do livro:

“Em 40 anos de vida literária me orgulho de nunca ter escrito um livro por outra razão que a da paixão artística, e jamais visando qualquer vantagem pessoal ou interesse econômico, diz Zweig ante a idéia de que outrem possa [sic] admitir que o seu livro Brasil, um país do futuro tenha sido escrito com um sentido de propaganda” .

O desabafo não teve qualquer repercussão pela simples razão de que foi publicado no semanário “Vamos Ler!” que pertencia ao grupo de veículos de propriedade do governo. O resto da imprensa, a “imprensa sadia” no dizer de Gondim da Fonseca, não se interessava em debater questões sensíveis capazes de envolver as próprias atividades do DIP e do seu criador, o poderoso Lourival Fontes.

Mas é preciso que se diga e de forma inequívoca: existem provas de que Stefan Zweig efetivamente fez um “negócio” com o governo brasileiro - escreveu o livro em troca dos vistos de residência para ele e para a mulher. Não houve um contrato, mas um entendimento. A velocidade com que o governo autorizou a concessão dos vistos dispensando o casal de qualquer documentação atesta um privilégio que confronta de forma ostensiva a má-vontade e a desumanidade com que o governo Vargas tratou os refugiados do nazismo, sobretudo os judeus.

O autor vingou-se à sua maneira: enfiou no texto inúmeras alusões e provocações a respeito da necessidade de abrir as portas do Brasil à imigração. Os críticos não tiveram a sensibilidade para perceber que ali estava a oportunidade para reparar uma desumanidade e forçar o governo a rever sua política imigratória.

Zweig reconheceu a impossibilidade de descrever o país inteiro. Conhecer toda a realidade – o presente – exigiria uma vida inteira como explica na introdução. Porém, sentiu-se à vontade para extasiar-se com a sua gente e com este material embrenhar-se no território da quimera e da profecia. Como humanista, acreditava que uma nação não era uma entidade abstrata, desprovida de humanidade.

Adorava aquele povo multicolorido, brando, tocado por uma suave melancolia (que antes dele apenas Paulo Prado havia observado). Previa que estas qualidades, devidamente ampliadas através de um sistema educacional competente, em algum momento seriam capazes de produzir a conciliação que a Europa pisoteava, implacável, há dez anos. Em plena era do Übermensch, o super-homem nazista, Zweig oferecia como alternativa, não o Jeca Tatu de Lobato ou o Macunaíma de Mario de Andrade, mas o brasileiro cordato, dócil, inventivo, trabalhador, mas incapaz de fascinar-se com as conquistas materiais que empolgavam europeus e norte-americanos.

Apostou no futuro com base na avaliação de uma sociedade multirracial que rejeitava o racismo e preferia a conciliação aos confrontos. A terre de l’avenir mencionada na epígrafe e expurgada pelas patrulhas ideológicas francesas há quase sete décadas era uma promessa de convivência, um projeto de civilização.

Em São Paulo, 1936, impressionou-se com uma visita à penitenciária, onde assassinos eram recuperados através do trabalho e da educação seguindo o sistema de um psiquiatra alemã,

Zweig rebelou-se na introdução contra o predomínio das estatísticas para avaliar uma nação. Difícil saber qual a reação de Roberto Simonsen (que tanto o ajudou na parte econômica) a este enfoque tão idealista e empírico.

A quimera zweiguiana, o retrato-falado do Brasil foi superada pela passagem do tempo e por estas mesmas estatísticas. Uma coisa, porém, parece certa: a quimera continua atual. Se não ela, a discussão sobre o que deu errado.