Viena, 1882 — Stamford, Connecticut, EUA, 1972

 

Tradutora, escritora, feminista, ativista social, precursora do culto a Stefan Zweig

 

Nascida Friderike Burger, uma das primeiras mulheres a graduar-se na Universidade de Viena, descendia de duas famílias judaicas não-observantes: os Burgers e Feigls (a mãe, Theresia, aparentemente não era judia).

 

Os irmãos (cinco homens e uma mulher, Leopoldine, Poldi), todos com formação superior, foram educados longe de igrejas ou templos e assim mantiveram-se. Exceto Friderike que aos 23 anos e convertida ao catolicismo, ganhou o nome do meio, Maria (como era hábito no império austríaco), e também uma intensa devoção religiosa da qual nunca se separou. (v. verbetes Siegfried/Ferdinand Burger; Alix Störk/Suse Höller).

 

Casou-se a primeira vez com Felix von Wintermitz (1877-1951), seu ex-colega do secundário, também judeu, convertido ao catolicismo quatro anos antes e cujo sonho era seguir a carreira diplomática protegido pelo pai, Jakob, alto funcionário do Ministério do  Exterior. Contentou-se com um cargo menor no Ministério das Finanças.

 

Casamento vazio, logo gerou uma filha, Alexia Elizabeth (Alix, nascida em 1907) à qual dois anos depois juntou-se  Susana Benedictine (Suse). Mulherengo, desambicioso, ausente, Felix entregou ao pai e à mulher, o sustento da família. Friderike experimentou o jornalismo literário e diante de ganhos insuficientes, preferiu lecionar francês e história.

 

O romance com o elegante poeta e dramaturgo Stefan Zweig começou num garden-party vienense numa noite do verão de 1908 (Alix recém-nascida): olharam-se e não se esqueceram. Cerca de quatro anos depois (agora mãe da segunda filha), igualmente em noite de verão e num restaurante ao ar livre, os olhares se cruzaram novamente. Desta vez com uma intensidade que a ambos não escapou

 

A iniciativa cabe a Friderike e assim será nas duas décadas seguintes: ela lhe escreve uma carta, começam a se encontrar, conversam muito. Primeira aparição da futura companheira nos diários: “...mulher  verdadeiramente sensível, o ser mais delicado que se pode imaginar, dotada de imensa energia afetiva...criatura frágil e delicada, porém tocante, infinitamente tocante...”

 

Seis meses depois: “...Visita de Friderike. Suave e afetuosa. Adoraria que ela se desembaraçasse da sensualidade que perturba, precisamente vindo dela, a sensação que tenho do seu admirável universo. Ela passa a noite aqui: me faz feliz, reencontro minha lucidez...”

 

Levou-a a Paris para apresenta-la aos amigos, sobretudo o recém-empossado mestre, Romain Rolland e quando a guerra começou foram morar em casas geminadas em Kalksburg, nos arredores de Viena. Impossível divorciar-se no católico império austro-húngaro, o arranjo das duas casas convinha aos dois: não era casamento, sequer coabitação: atendia às aparências e às convicções religiosas de Friderike, deixava-a livre para cuidar das filhas e a Stefan oferecia total autonomia para a imersão na literatura sem preocupações domésticas.

 

Por conta das sequelas de uma disenteria quando Suse era bebê, Friderike a levava a clínicas e sanatórios de pediatria, liberando o companheiro para seus deslocamentos em função de conferências e lançamentos.

 

“Eu poderia ajudá-lo de muitas maneiras, além de interessar-me pelo andamento do seu trabalho e, ocasionalmente, sugerindo novos temas. Minha tarefa principal, porém, era manter a sua volta uma atmosfera de paz, cavar trincheiras em torno de seu reduto espiritual. Ele não permitia que eu o ajudasse como datilógrafa ou estenógrafa, dizia sempre que eu poderia ser mais útil ajudando nas pesquisas, traduzindo citações, lendo e  resumindo os livros recebidos e agradecendo aos remetentes” registrou Friderike em suas memórias. “Como guardiã do seu mundo interior eu cuidava de protegê-lo das demandas do mundo exterior. Meu círculo de atuação era amplo, mas intransponível.”

 

O esquema cristalizou-se a partir de 1915, no início da Grande Guerra, quando Zweig mergulhou na composição da sua primeira grande obra, o poema dramático pacifista, Jeremias. Friderike não a menciona, mas a sua grande façanha no período foi ajudar Stefan a livrar-se do seu primeiro surto depressivo provocado pelo início do conflito e as emoções contraditórias que produziu. Alertado por ela Romain Rolland, de Genebra, animou o pupilo, ajudou-o a encarar a opção de manter-se na contracorrente e, assim, fortaleceu uma amizade estendida por mais 25 anos.

 

Em 1917, em visita a Salzburg o casal imaginou que seria o lugar ideal para morar. Depois, casualmente, Frederike descobriu na cidade uma mansão arruinada no Monte dos Capuchinhos, em meio a um bosque. Stefan comprou-a em nome da companheira. Acabada a guerra, ela revelou-se também extraordinária tocadora de obras capaz de contornar a carência de mão-de-obra e materiais. Em 1919, o palacete já está habitável e acolhedor.

 

O estabelecimento da república austríaca eliminou da legislação as restrições de origem religiosa, o divórcio de Felix e Friderike von Winternitz foi rapidamente aprovado. A fervorosa católica, porém, preferiu não comparecer ao casamento civil nomeando como procurador, um dos melhores amigos de Stefan, Felix Braun, ex-judeu, também convertido.

 

Nos quatorze anos seguintes, o roteiro seguiu imperturbável apesar das sucessivas crises políticas, sociais e econômicas tanto na vizinha Alemanha como na Áustria. Aos contínuos sucessos literários acrescentaram-se excelentes retornos financeiros. Zweig era um bestseller não apenas no universo germanófono mas também mundial. Além de intensamente traduzido, suas novelas começaram a ser adaptadas para o cinema com bastante sucesso.

 

A casa no número 5 do Monte dos Capuchinhos, Kapuzinerberg, tornou-se uma referência durante o verão quando a fina flor da intelectualidade europeia passava por Salzburg para assistir, participar ou inspirar-se no seu celebrado festival de música e teatro.

 

De administradora daquela “fábrica”, Friderike passou à condição de anfitriã e parte integral do círculo de amizades do marido. Nos intervalos deveria ser a primeira a detectar suas irritações, explosões e depressões, em seguida contorná-las com o antídoto mais apropriado.

 

Primeiros abalos naquela estrutura aparentemente inabalável registraram-se nos diários de Stefan, fins de Outubro de 1931 quando estava envolvido — com a ansiedade de sempre — na elaboração da biografia de Maria Antonieta. Na véspera de completar os cinquenta anos aquele incansável trabalhador intelectual não se conformava com o ócio das enteadas, mulheres feitas (com 24 e 21 anos).

 

Ao defender as filhas, Friderike só ampliava as rusgas. Não pressentiu que a decisão do marido de alugar um apartamento em Londres para trabalhar na biografia de Maria Stuart mascarava uma crise existencial do escritor intranquilo, mercurial e, concomitante, uma outra, conjugal. Stefan transformara a sensual namorada numa eficiente operadora da firma, Betrieb, doméstico-profissional. E quando ela flagrou o marido agarrado à secretária londrina, Lotte Altmann, quando estavam todos em Nice, Costa Azul, a consternação não veio do amor-próprio ferido, da dupla traição (fora ela quem a selecionara numa organização de refugiados da Alemanha), mas da percepção de que os cabelos grisalhos e os muitos quilos que ganhou como factótum a serviço do homem que adorava nada valiam.

 

Os três anos transcorridos entre o flagrante da infidelidade (1935) e a consumação do divórcio (1938) foram extremamente penosos para Friderike. Foi tudo razoavelmente amigável, acertado através de advogados, mas as naturais vacilações de Stefan eram respondidas pela família de Lotte (principalmente seu irmão, Manfred Altmann (v. verbete), com pressões extremamente severas, ignorando que todos eram igualmente refugiados, vítimas do terror nazista.

 

Romain Rolland, sempre muito ligado a Friderike, tentou interferir em seu favor quando ela encontrava-se em Paris, expatriada, sem documentos e pediu a Stefan que a incluísse como consorte no pedido de naturalização ao governo britânico. Isso significaria que da França ela teria que transferir-se por algum tempo à Inglaterra até a concessão do passaporte. Zweig reagiu ao apelo de Rolland com extrema rudeza. O que pode ter agravado um distanciamento até aquele momento situado apenas na esfera ideológica.

 

De Paris, Friderike pressentiu o crescente pessimismo de Stefan a partir do dia em que começou a Segunda Guerra Mundial. Adivinhava o que se seguiria, mobilizou os amigos parisienses e logo Stefan recebeu os convites para conferências na capital francesa. Despediu-se da Europa antes da sua ruína.

 

O decidido empenho de Stefan para garantir a fuga de Friderike, filhas e genros, da França para Nova York, apagou a violenta transformação sofrida por Stefan nos últimos tempos. O inesperado reencontro dos ex-cônjuges no saguão de um edifício na Broadway, Nova York, em 23 de janeiro de 1941, impressionou-os da mesma maneira.

 

Nos meses seguintes Frederike, Lotte e Stefan encontraram-se inúmeras vezes. Inclusive no coquetel que Stefan e Lotte ofereceram no Hotel Wyndham aos amigos refugiados em Nova York.

 

A redação da autobiografia de Stefan remontou o triângulo pela última vez durante algumas semanas em junho-julho de 1941. Para escapar da inclemência do verão nova-iorquino, Frederike alugara um apartamento em Ossining, às margens do Hudson. Sentindo-se inseguro em matéria de eventos e pessoas e sem o apoio da documentação, Stefan recorreu à memória da ex-companheira (com a qual havia convivido intensamente desde 1912) e alugou uma simpática vila nas redondezas.

 

Angustiado com o desenrolar da guerra e com a sua própria situação de expatriado e sem-teto (impossível retornar à Inglaterra àquela altura do conflito), resolveu, como já fizera anteriormente, enfrentar a depressão mergulhando no trabalho.

 

Pela manhã escrevia, de tarde recapitulava os fatos com Friderike, depois revia o texto datilografado por Lotte e Alexia, a ex-enteada primogênita convocada para ajudar. Rotina insana, tensa. Para todos, exceto talvez para Friderike.

 

O trabalho terminou abruptamente antes do prazo. Amigos que os visitaram em Ossining registraram posteriormente o abatimento de Lotte. A intensa correspondência mantida com a sua cunhada, Hannah, não foi integralmente publicada, o que agrava as dúvidas e suspeitas geradas pelo segundo livro de memórias de Friderike, Spiegelungen des Lebens [Reflexos de Vida], publicado em 1964.

 

A decisão de retornar ao Brasil foi tomada para agradar Lotte. A cogitada opção pelos Estados Unidos (caso obtivessem o visto de residência), mesmo residindo na distante Califórnia (que Stefan apreciava e onde morava Thomas Mann), não a impediria  Friderike de exercer o poder afetivo que acabara de reconquistar.

 

De volta ao Brasil, Stefan voltou a corresponder-se assiduamente com a ex-mulher, geralmente com um adendo de Lotte. No dia do seu 60º aniversário recebeu dela e das filhas carinhoso telegrama e, como presente, um conjunto de obras sobre Michel de Montaigne, seu derradeiro guia espiritual.

 

Das mais de vinte cartas de despedida escritas por Stefan a última foi para Friderike, no próprio domingo, 22 de fevereiro de 1942, horas antes de ingerir a morfina que o matou. Escreveu-a em inglês, para evitar que a censura americana ou brasileira embargassem um texto no idioma alemão. Não teve tempo de despachá-la: deixou-a com os papeis que seriam entregues ao editor e testamenteiro Abrahão Koogan. Carinhosamente designa as filhas de Friderike como antigamente -- “as crianças” – e despede-se da ex-companheira “com amor e amizade”.

 

Alfred Zweig (v. verbete), o único irmão de Stefan, indignou-se com o papel de viúva assumido por Friderike.  Sobretudo quando publicava uma das quatro valiosas obras que deixou sobre a vida e a obra do marido-escritor. Quem a colocou nesta posição foi a legião de amigos que também eram seus. Manteve laços com todos.

 

Principalmente Scholem Asch, o grande escritor em língua idish (v.verbete) por quem Zweig tinha enorme admiração. Visitou o casal inúmeras vezes quando moravam em Stamford, Connecticut, e tanto gostou do lugar que Asch e sua mulher, Mathilde, lhe conseguiram uma simpática casa para comprar. Lá morreu.  No período em que foram vizinhos (Asch depois se mudou para Israel), Friderike abasteceu-o com referências para o último volume da trilogia que tanto furor causou nos meios judaicos e tem como personagem a sua padroeira (“Maria”, de 1949).

 

No livro que comemorou os seus setenta anos (Liber Amicorum Frederike Maria Zweig, 1952), está inscrita uma exemplar rede de afetos que o tempo, as guerras e o esquecimento não conseguiram separar.

 

Endereço na Agenda: 228 West 11th Street [riscado]; 1 Sheridan Square, New York. Tel. c/o Hoeller Chelsea 2-7895.